domingo, 19 de outubro de 2008

Grandes Leitores 3ap - MAIO 68


Conforme há os Grandes Eleitores aqui no 3ap vamos ter os Grandes Leitores 3ap. Serão aqueles que, não sendo estudantes ou ex-estudantes do ISCAL de Administração Pública, seguem o nosso Blog e nos dão conta disso mesmo mandando-nos colaboraçoes que do seu ponto de vista são partilháveis aqui neste espaço web. Temos a primeira contribuição de dois leitores - Esaú Dinis e Helena Mendes - que pensam o Maio 68 por dentro. Nesta altura a maioria dos 3aps estavam longe de nascer, por isso uma boa maneira de irem até este momento da História e de nos associarmos às comemorações dos seus 40 anos.

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Um berço que Maio 68 inspirou e que Abril 74 fez florir

Há um berço feito de vimes, aconchegante como se fora um ovo, que serviu de pátria comum a recém nascidos de duas gerações e diversas nacionalidades.
Tem tudo de cama, mas é um cesto, com o bojo muito aberto e duas asas de levar e ir daqui para acolá, balanceando como quem embala transportando. Depois enfeita-se de colchão e rendas, minúscula almofada e lavados lençóis perfumados, e, às vezes, por cima, uma fralda branca como vela a fazer negaças ao sol que insiste em espreitar a criança que adormece, com um olho meio aberto e o outro já dobrado para dentro.
Às vezes, lembra um açafate onde rosas silvestres estivessem balouçando à cabeça de varina, ou quitandeira. Outras, uma alcofa que se levasse debaixo do braço como quem transporta presente.
Lá de dentro, pela manhã o vagido que anuncia o acordar, pela tarde um silêncio de brisa, noite dentro um grito de alerta, pelos dias adiante a surdina de quem aprende a soletrar presença, ensaiando respostas.
Tudo começou, no início do verão de 1971, quando Nury e Pablo viajaram pela Ilha da Madeira, e foram seduzidos por aquele engenhoso entrançado artesanal de verga, em cor de vinho envernizado, apetecendo deitar menino pronto a nascer, em breve.
Pedrito foi quem o estreou, nascido em Paris, longe da pátria renascida com Allende, para durar até que chovesse em Santiago, mas destinada a renascer.
O jovem casal chileno - peruano, viajara pelo velho mundo, e fizera paragem na Cidade Luz, com o intuito de aprofundar projectos sobre questões de desenvolvimento, que depois semeariam pela América Latina.
Ainda com os ecos e o espírito de Maio 68 soprando, a capital da França era, talvez mais do que depois, terra de asilo, constituindo um centro cosmopolita onde afluíam emigrantes de todas as ilusões e desesperos, inúmeros refugiados de contraditórias ideologias, além de muita gente inquieta, à procura, tanto de sobrevivência, quanto de novos horizontes e libertação.
O espírito de comunidade e de partilha contagiava a esperança dos que acreditavam num mundo melhor, outra terra, mais justa e fraternal.
Então, era normal encontrar, entre os estudantes estrangeiros que frequentavam Estudos para o Desenvolvimento com o pensamento no 3º Mundo, brasileiros, peruanos, chilenos, argentinos, mas também senegaleses, angolanos, guineenses, asiáticos de diversa proveniência, e ainda belgas, suíços, espanhóis, sobretudo do país basco, italianos e portugueses.
Como o Nuno vinha a caminho, coube-nos a sorte e responsabilidade de herdar o berço, enquanto fieis depositários, ficando com a incumbência do empréstimo a quem, acabado de nascer, quisesse aninhar-se em pátria internacional.
Uma após outra, diversas crianças recém nascidas, mais de dezena e meia, encontraram nele aconchego, quinhão e partilha.
Quando finalmente, o 25 de Abril libertou as fronteiras e as grilhetas de um povo que quase desesperava da liberdade, o pequeno ninho comunitário viajou para Portugal, como símbolo de terra libertada, depois de, no exílio, ter sido pátria sonhada.
E foi assim, que, ao longo de quase quatro décadas, foi passando de mão em mão, de família em família, de cidade em cidade, contribuindo para transformar em projecto compartilhado, aquele pequeno e frágil porto de abrigo.
Num mundo, onde competição e vaidades pululam como erva daninha de individualismo egoísta, sabe bem evocar, nesta jangada artesanal de vimes, navegando no tempo e por lugares diferentes, a memória dos afectos, gestos e odores, a lembrança dos primeiros sons, sonos e sonhos, de todos aqueles que no alvor da vida ali encontraram acolhimento, repouso e harmonia, prefigurando uma humanidade que se imagina livre e mais património de todos.

Queluz, 11 de Setembro de 2008
Esaú Dinis, com apoio de Helena Mendes, herdeira inicial e fiel depositária

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